Uma boa cerveja deve descer redondo ou redonda? A Skol desce redondo ou redonda?

1) Indaga um leitor qual a forma correta: "A cerveja que desce redondo"; "A cerveja que desce redonda" ?

2) Veja-se, para fixar um primeiro conceito, o seguinte exemplo: "Ele trabalhou pesadamente". Nessa estrutura, ele é o sujeito, trabalhou é o verbo, e pesadamente é o adjunto adverbial (ou seja, a palavra indica uma circunstância referente ao verbo).

3) Desde o latim, porém, existe a possibilidade de diminuir esse advérbio (pesadamente) e pôr em seu lugar um vocábulo de forma adjetiva (pesado), o qual, então, em decorrência de sua função adverbial, fica invariável: I) "O juiz trabalhou pesado"; II) "A juíza trabalhou pesado"; III) "Os desembargadores trabalharam pesado"; IV) "As advogadas trabalharam pesado".

4) Uma análise não apenas gramatical, mas também semântica, da mencionada estrutura mostra com clareza a função adverbial (e não adjetiva) de pesado, que modifica trabalharam (um verbo), e não juiz (um substantivo). Em outras palavras, o sentido é trabalhar pesado, e não juiz pesado.

5) Para fixar um segundo conceito, tome-se um outro exemplo: "O trabalhador chegou cansado". Nessa estrutura, trabalhador é o sujeito, chegou é o verbo, e cansado é um predicativo do sujeito (refere-se ao sujeito).

6) Contrariamente ao advérbio da hipótese anterior(que é categoria gramatical invariável), tem-se, no caso, cansado, que é um real adjetivo e concorda com trabalhador, motivo por que é passível de flexão em gênero (masculino ou feminino) e número (singular ou plural): I) "O trabalhador chegou cansado"; II) "A trabalhadora chegou cansada"; III) "Os trabalhadores chegaram cansados"; IV) "As trabalhadoras chegaram cansadas".

7) Também aqui uma análise não apenas gramatical, mas também semântica, da estrutura analisada mostra com clareza a função adjetiva (e não adverbial) de cansado, que claramente modifica trabalhador (um substantivo), e não chegou (um verbo). O sentido, sem dúvida, é trabalhador cansado, e não chegou cansado.

8) Feitas essas distinções com os exemplos dados, observa-se que, em alguns casos, acaba surgindo a dúvida no relacionamento sintático entre as palavras ou expressões, e surge a indagação: um vocábulo com aparência adjetiva tem sempre função adjetiva, ou desempenha função adverbial?

9) Para responder a essa questão, veja-se exatamente o exemplo da consulta: "A cerveja que desce redondo". Quando se analisam as relações entre os vocábulos e expressões da frase, vê-se que se pode extrair duas conclusões: I) é possível pensar em redondo como o modo como desce a cerveja (e, então, redondo tem função adverbial e é invariável); II) também é possível em redondo como uma qualidade da cerveja, que, ao descer, continua redonda (e, assim, redondo tem função adjetiva, clara de um predicativo do sujeito, e, por conseguinte, é variável).

10) Feitas essas observações e ante o quadro que se formou e suas premissas, chega-se à conclusão de que ambos os exemplos são corretos: I) – "A cerveja que desce redondo"; II) – "A cerveja que desce redonda". No primeiro deles, embora com aparência adjetiva, redondo é um adjunto adverbial (e, assim, invariável); no segundo, redondo é um adjetivo com a função de predicativo do sujeito (e, portanto, variável).

É impossível mumificar a língua. Organismo vivo, está sempre em movimento, como se fosse um rio que busca o mar. Bem por isso, corremos o risco de topar com algo tido por certo, hoje, que amanhã poderá ser interpretado de forma diversa.
Há quem me pergunte sobre o acerto ou não desta frase: uma cerveja que desce redondo. Instala-se-nos a dúvida: não deveria ser redonda, concordando com cerveja? Em tempo: o texto foi veiculado como propaganda de certa cerveja.
Nos velhos bons tempos, nosso professor de português nos ensinou como diferençar um adjetivo de um advérbio. Registre-se que ambos têm função qualificadora. Daí aflora a confusão, uma vez que, ora aqui ora ali, usamos um adjetivo para fazer o papel do advérbio. Isso baralha nossos pensamentos.
Vamos lá. A função dos adjetivos é qualificar os substantivos. De sua vez, cabe aos advérbios de lugar, tempo, modo, afirmação, negação e dúvida caracterizar sobretudo o verbo. Eventualmente – o que sucede com os de intensidade –, podem modificar também adjetivos ou outros advérbios: muito feliz (modifica o adjetivo feliz) / muito bem (modifica o advérbio bem). Advérbios terminados em mente podem modificar uma oração inteira incidindo sobre ela: diariamente resolvemos questões.
O adjetivo é classe variável, ao passo que o advérbio – no geral – não sofre flexão de gênero nem de número, mas alguns sofrem flexão de grau semelhantes às dos adjetivos. Para distingui-los, dizia nosso professor, recorra ao plural. Ele chegou cansado. Plural: Eles chegaram cansados. Adjetivo no duro. Outro mais: Ela fala alto. Plural: Elas falam alto. Como vemos, alto não se flexiona. É, portanto, advérbio.
O advérbio todo pode concordar, por atração, com o termo que o ladeia: A sala ficou toda alagada. Na linguagem mais culta, corre de preferência esta: A sala ficou todo alagada.
A verdade é que um grupo de adjetivos existe que podem ser usados como advérbios, mantendo-se invariáveis: Responda calmo. / A notícia chegou rápido. / Transcrevi a sentença errado. Denominam-se adjetivos adverbializados. Atenção: Transcrevi a sentença errada. Agora, como mero adjetivo, o sentido é outro: não transcrevi a sentença que devia.
No dia a dia, vemos à farta o emprego do adjetivo independente pelo advérbio: “Independente” da notificação, ele compareceu à audiência. Na linguagem jurídica, que segue o padrão culto, traduz puro deslize. Fiquemos com o certo: Independentemente da notificação, ele compareceu à audiência.
Na Constituição da República, art. 203, temos: A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição… Como deveria ser! No Manual de redação jurídica, José Maria da Costa arquiva equívocos do CC/1916, do Código Comercial e do Código Eleitoral, com a devida correção.
Voltemos ao foco desta coluna: Uma cerveja que desce redondo. O adjetivo redondo substitui o advérbio de modo, valendo por redondamente. Semelhante a isto: Ele fala claro, ou seja, de modo claro. Outra mais: Ela ganhou de você disparado. Predomina a maneira como ela ganhou. Claro e disparado não sofreram flexão alguma. São advérbios.
No caso em análise, redondo se reveste de sentido figurado. Significa: a cerveja desce de maneira macia, suavemente. No verbete redondo, Dicionário Sacconi, há esta passagem: O único uísque que me desce redondo é este. O valor semântico se repete.
Expandindo o exemplo de Sacconi, é possível ligar o advérbio redondo a algo que caiu bem, a algo agradável ao gosto, sentido pelo qual se percebe o sabor das coisas.
De fato, a qualidade “redonda” não se aplica a cerveja. A garrafa, esta sim pode ser redonda. Na col. 186 de Não tropece na língua, Piacentini afirma: não se pode dizer que a cerveja é redonda. Foi taxativa.
Não por acaso, Aurélio alude a vinho aveludado: o que dá uma sensação suave ao paladar. Sentido de maciez, de suavidade. Descer redondo também significa descer aveludadamente. Deliciosamente. Algo que proporciona prazer pleno.
O Prof. Kaspary, ao trazer à cena os adjetivos adverbializados, exemplifica: Aquela cerveja desce redondo. Já Sacconi acentua que tal frase é perfeita, pontuando o sentido figurado do advérbio redondo: de modo fácil e gostoso.
No Guia prático do português correto, v. 3., o Prof. Cláudio Moreno, preciso sempre, pondera que, in casu, redondo não é um atributo relacionado normalmente com cerveja, mas sim com seu trajeto e com sua passagem por nosso aparelho gustativo.
Cegalla enfatiza que, na propaganda comercial, o adjetivo redondo é considerado, geralmente, advérbio. Daí a concordância no masculino. Complacente diante da divergência de opiniões, acolhe as duas alternativas: cerveja que desce redondo / cerveja que desce redonda.
A distinção em pauta parece, às vezes, tão enovelada, tão intrincada, porque entre o adjetivo e o advérbio há uma linha muito tênue a separá-los.
Seja como seja, o vínculo entre o advérbio redondo e o verbo descer é predominante. Mais que isso: “redonda” não é qualidade que se associa, numa boa, com cerveja. Só nos resta brindar: Como esta cerveja desce redondo! Gelada, sempre cai bem.

O post “Redação nota mil” (terça-feira) mereceu atenção especial dos leitores. Por duas razões. Uma: o assunto. Falar sobre a polêmica correção de redações do Enem atrai estudantes, professores, pais, avós & cia. ligada à educação. A outra: o emprego do singular nesta passagem: “Erros de grafia, concordância, regência passam batido pela banca examinadora”.

“Não deveria ser batidos?” A questão provocou debate no blogue. Entupiu e-mails do jornal. Ocupou telefonistas atentas ao movimento externo. E daí? A dúvida tem tudo a ver com outra, mais antiga: “Skol — a cerveja que desce redondo”. Não seria redonda?

Batido ou batidos. Redondo ou redonda. Depende da função da palavra. Invariável, no masculino singular, ela é advérbio: Erros de grafia, concordância, regência passam batido (batidamente) pela banca examinadora. Skol — a cerveja que desce redondo (redondamente). Ela desceu rápido (rapidamente). Advérbios relacionam-se a verbos, adjetivos, advérbios ou frases inteiras e não se flexionam em gênero nem em número, pessoa, tempo, modo, voz ou aspecto, são palavras invariáveis. Só se flexionam em grau por meio de derivação.

No plural ou feminino, é adjetivo. Aí, concorda com o substantivo a que se refere: Erros de grafia, concordância, regência passam batidos pela banca examinadora. Skol — a cerveja que desce redonda. Ela desceu rápida. Adjetivos relacionam-se a substantivos ou pronomes. Flexionam-se em gênero, número e grau, são palavras variáveis.

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